CRIAÇÃO

22 Julho 2023

Já ninguém tem pressa

Já ninguém tem pressa
aonde
o mais relevante é o onde
agora
Estou a tocar o mundo
– luvas de látex não são como uma prótese
são como uma irmã
Estrondeiam as ruas vazias
– eco das apneias receosas
sem máscara
Enquanto a solidão avança ligeiramente

Logo pela manhã fico enjoada da fobia social
que incha no prato como uma papa indigesta
às vezes poderia dar um passeio numa floresta
perder-me pelo menos por um momento
entre as árvores

Por todo lado surgem as indicações
toca com cuidado
ama com máscara
limita os beijos
faz-te pequeno nos becos perante a multidão

Respiro profundamente
ao ler dos teus olhos
agora confia

Ficaremos calmos no fundo do oceano

22 Julho 2023

Em jardins zen

Nos serenos jardins
as pedras falam
selvaticamente,
sob as areias,
criando filosofias
duradouras,
que refrescam emoções
por entre o lixo
que levará à inexistência
da humanidade.

Provavelmente
fácil será perdoar
superando o fingimento,
provavelmente será mais fácil amar
do que lançar areia aos olhos humanos
e destruir a harmonia do Paraíso.

No jardim da tranquilidade
não recordo o cheiro dos miosótis
ou talvez nem tenham cheiro na minha memória,
florescendo à beira do rio num azul deslumbrante
com um amarelado olhar pleno de desafios
enquadrado nas reflexões a cada início de cada verão.

22 Julho 2023

Se eu fosse o teu damasqueiro,

Se eu fosse o teu damasqueiro,
farfalhava ao teu ouvido como era saborosa.
Aderias à cortiça com as tuas narinas.

Acariciavas a minha copa cheia de folhas.
Colhias os frutos maduros, passavas a mão sobre o tronco
de baixo para cima,
abocanhavas as raízes,
tocavas no musgo. E quando eu estivesse a florescer,
a sugar os sumos,
cortavas apenas os meus brotos secos
e protegias-me do frio.

Junto a ti, podia tornar-me
um pomar de damasqueiros, ou mesmo uma plantação.
Com a polpa e o sumo
podia alimentar-nos, aves selvagens,
formigas, abelhas melíferas…

Se eu fosse um damasqueiro
e tu vivesses numa cabana perto de mim,
tinhas uma vida doce,
coração e pulmões puros,
compota e lenha para quando fosse necessário.

Traduzido por Gabriel Borowski

17 Maio 2019

Portuguese mulheres*

Portuguese mulheres* soak up
the sun in Algarve cafes

while in Warsaw’s Łazienki Park the old grey
feeds the pigeons calm and gently

for this morning avian ritual
she has run half a marathon
she doesn’t have fits of anger any more
she doesn’t nurture scars

with each passing year more strongly
down to earth
the smile that kisses butterflies
should be on the calendar –
not forced – more beautiful with every line
she knows it’s hardest to forgive

Translation Graham Crawford
Anturaż, FONT 2019

*in Portugese – women

13 Maio 2019

Não foste prevista…

Não foste prevista…
conheci-te hoje com os meus próprios olhos
atravessei ficheiros fotos e-mails
vagueei pelos juncos de mensagens —
olhei-te nas retinas como a um peixe nas guelras
e pensei: saudável
lábios róseos como ovas numa caverna
prometeram muito —
o corpo em equilíbrio com o intelecto
antigamente no mercado veneziano
os pais punham as suas filhas à venda
um comércio… em nome da sua felicidade
agora elas próprias se vendem com vontade nos leilões —
bastam alguns cliques e engenho no photoshop
conheci-te hoje com os meus próprios olhos
atravessei as veredas
(de vontades e venerações)
os cheiros que eu quis sentir
vasculhar na tua pele e no teu pulso
afastando a penugem do vestido
para acariciar a polpa
extrair caroços na ternura
tocar a semente na promessa
conheci-te hoje com os meus próprios olhos
havia um v a z i o
aridez numa casca
como ficheiros de palavras sob cuidados maternais
de uma cibermistificação

Traduzido por Gabriel Borowski
Anturaż FONT 2019

13 Maio 2019

Encantações do oceano

Encantações do oceano
e vou
acariciá-la
adorá-la e respeitá-la
lírica e não liricamente
ela é a única
emergida da onda dos sonhos em Tavira
trazida pelo oceano
uma concha sonora
não Afrodite
o meu amor não cibernético


Traduzido por Gabriel Borowski
Anturaż FONT 2019

13 Maio 2019

Seguimos numa onda escura e fresca

Seguimos numa onda escura e fresca
mas estamos ainda no porto
ninguém quer ser um peixe morto
lançado à areia pelo oceano
os olhos como feridas abertas —
doem quando vemos demais
Deus deve atenuar o medo
que incomoda como um espinho
e a pequena marca na pele lateja como um óvulo —
nas farmácias não há remédio para a incerteza
o que quer que pensemos não chega
para podermos falar dos génios
debruçados sobre o frágil humano
a corrosão vem a todos
quando o solo ondeia e não dá suporte
e os pés ficam muito tempo na água


Traduzido por Gabriel Borowski

13 Maio 2019

Num cartaz eleitoral

Num cartaz eleitoral
a conversa vazia desfaz-se como uma bolha de sabão
oxalá se encha de palavras-limalhas
um miolo colorido da Fábrica dos Sonhos
acaba o intervalo para a penitência
e a espera pelos dias mais fáceis
oxalá as palavras não ressoem surdas
a saudade força o verso a não se calar
porque uma palavra boa antes de dormir seduz
como uma almofada de pelúcia
às pessoas dos cartazes
de tanto sorrirem
caem bochechas pálpebras lábios


Traduzido por Gabriel Borowski
Anturaż FONT 2019

13 Maio 2019

E se…

E se… a lua fosse do tamanho
de um píxel
teria o porte de um homem insensato
(uma gota de sangue no seu corpo)
flutuaria de pernas para o ar como o vulto de Neil Armstrong
e o luar dourado
aquecer-me-ia
como se estivesses comigo fisicamente
crer na miragem? as iguanas estão perto
com óculos ou sem eles
estás a sentir? — é um rosário
de Fátima um aroma de sândalo
que envolverá de noite
não apenas os nossos dedos


Traduzido por Gabriel Borowski

13 Maio 2019

Nas falésias

Nas falésias do Algarve respiramos — fundo

a violência do vento são asas

e os sonhos já não são mais uma onda

deixo-me levar pelo oceano e por ti

sem mapa sem bússola nem consenso nem boia

 

já não contamos as lanternas no céu —

mesmo para as gaivotas perdidas a noite não é estranha

navegamos com o triunfo de uma vela cheia

empurrados para dentro da neblina da manhã

 

por trás das rochas do pensamento há remoinhos

dióxido de carbono em demasia —

os ambientalistas vão capturar-nos (sem piedade)

por causa deste fogo que arde como incêndio

imoderado nos nossos corações

 

Traduzido por Gabriel Borowski

Anturaż , FONT 2019